SÍRIA

É completamente impossível assistirmos ao que se tem passado nos últimos dias no território mártir da Síria sem sentirmos um sentimento de revolta, por pequeno que seja, e de frustração, com todos os massacres e horrores que vão chegando ao nosso conhecimento através da comunicação social internacional. São imagens como há muito não víamos, que por instantes nos fazem recordar o que se passou no início dos anos 90 do século passado na Bósnia-Herzegovina, por ocasião do desmembramento da antiga Jugoslávia.
A Síria transformou-se, neste momento, num campo de batalha onde se cruzam e combatem diversificados interesses da mais variada natureza que, diretamente ou por intermédio de terceiros, devastam aquele martirizado território e dizimam aquela infeliz população.
Interesses nacionais e estrangeiros, de Estados, de organizações e de grupos armados e terroristas que estabelecem as mais improváveis coligações e nos fazem ter dificuldade, inclusivamente, em saber quem é quem, quem combate quem, e quem tem o apoio de quem – num jogo de xadrez altamente complexo, de difícil entendimento e perceção, do qual apenas sabemos com certeza o trágico resultado final. E esse é a dizimação de um povo, o genocídio de uma população ao longo de mais de sete anos de guerra, as centenas de milhar de vítimas que já ocorreram. Estes são os factos iniludíveis.
É no território sírio, aliás, que se vão ensaiando novos ordenamentos internacionais e que vão surgindo novos atores da cena internacional com aspirações a desempenharem papel de relevo nas suas regiões – a Turquia, membro da Aliança Atlântica mas cada vez menos europeia, e o Irão são apenas dois dos exemplos que podemos mencionar. A par, claro, da Rússia de Putin, sempre pronta a atuar onde lhe seja útil e conveniente, aliado indispensável do ditador Assad que não se exime a bombardear e a dizimar o seu próprio povo. É neste conflito do presente que se poderão estar a forjar as novas alianças e os novos ordenamentos do futuro.
Infelizmente, perante a sanguinolência do conflito, a comunidade internacional tem de se haver com duas omissões e com duas ausências de peso.
A União Europeia, que pese embora o conflito se trave nas suas próprias imediações, uma vez mais não consegue ir além de meras proclamações de circunstância, desprovidas de quaisquer efeitos práticos. Sem quaisquer meios que lhe permitam qualquer tipo de intervenção no terreno, tem uma vez mais de se circunscrever à posição de espetador interessado sem possibilidade de minimamente intervir no conflito.
Por outro lado, os Estados Unidos que, desde que entregues aos humores de um louco, deixaram de ter uma política externa credível, um rumo conhecido e um qualquer desígnio identificado. Mais do que nunca, quem quiser saber ou perceber a política externa dos Estados Unidos, outrora o farol do mundo livre e do ocidente dos valores, terá de analisar e acompanhar os tweets diários de Trump. É pouco, é muito pouco, para quem continua a deter a maior força dissuasora, no plano militar, de todo o globo.
E é nestas alturas, e perante estas tragédias impróprias do nosso século, que cada vez mais se faz sentir a falta de um verdadeiro direito humanitário de ingerência – que dê à comunidade internacional o direito de agir e de intervir em situações-limite, como aquelas com que estamos a ser confrontados.
Sob a égide da ONU – que, apesar de todas as suas insuficiências, continua a ser, para utilizarmos as palavras sábias do Professor Adriano Moreira, o único lugar do mundo onde todos se encontram com todos – reclama-se cada vez mais a criação de normas e regras que permitam uma intervenção, militar se necessário, em nome da defesa dos mais elementares e básicos direitos de populações sujeitas e submetidas a provações e barbaridades, como aquelas que presentemente ocorrem na martirizada Síria. É de um direito humanitário de ingerência que se trata e que se torna cada dia mais necessário e mais imperioso.
Tempos houve em que, mesmo sem terem sido para tanto mandatados por quem quer que fosse, os Estados Unidos chamaram a si esse papel e essa missão. Atribuíram-se, abusivamente, o papel e a missão de polícias do mundo. Mesmo sem mandato, cumpriam a missão e sabíamos ao que iam. Hoje, que se demitiram dessa tarefa, a comunidade internacional não se pode ver na contingência de ter de escolher entre a barbárie, as aspirações de Putin ou a emergência de pequenos ditadores que aspiram a ser regionalmente influentes.
É por isso que se torna imperioso, lentamente, ir criando e consolidando um direito (internacional) humanitário de ingerência que permita à comunidade internacional reagir contra a barbárie e a selvajaria, em nome de princípios e valores que são comuns a toda a humanidade. A humanidade não pode esperar e amanhã pode ser tarde.
João Pedro Dias, investigador em assuntos Europeus